sábado, 17 de maio de 2008

O velho

O velho encostava a testa no balcão molhado daquele antigo bar de São Luís. O botequim fervilhava de gente e música. Entre conversas animadas, pessoas rindo felizes, cadeiras mexendo para nos acomodar melhor, uma ou outra gargalhada mais espaçosa, animais movendo-se nas barracas de feira, o velho, incólume, debruçava-se naquele balcão úmido e frio. Parecia até mesmo morto, mas o copo, ainda úmido externamente, denunciava-o como vivo, pelo menos até pouco tempo. Aquela figura me tirava a atenção da conversa da mesa, meus olhos buscavam qualquer movimento, qualquer suspiro. Nada.

A manhã seguinte surgiu esplendorosa já nas suas mais tenras horas. Aquela brisa atlântica soprava sobre toda a cidade, o ar, suavemente frio, era limpíssimo e leve demais. No céu um azul indescritível, sem uma nuvem sequer para manchar-lhe a intensidade, era uma chamado para a vida e um aviso que o dia seria inexplicavelmente quente. E assim o foi. Dentro das roupas empapuçadas media-se temperaturas solares. O vento cessara, o céu continuava límpido, transparente, nem mesmo azul ele era. O sol restava branco, intenso e só. Castigando-nos, implacável. Até que uma pequena nuvem, vindo da direção de Alcântara, parecia gritar lá de cima: água! E assim o foi.

Uma tarde sombria, fria e úmida. Agora já havia um vento ameaçando os telhados metálicos e as paredes de taipa. Tudo se fechava. Tudo se encolhia esperando o dilúvio anunciado e eminente. Tudo era medo e esquiva. Blasfêmia.

Talvez entardecesse naquela testa encostado no balcão do Léo e talvez preparava-se uma chuva tremenda. Talvez já chovesse, tempestadeando. Talvez até já fosse noite e o velho contemplava apenas o ocaso na Praia Grande. Lindo.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Num posto no centro

Acabava de parar no posto de gasolina para abastecer. Encostado ao carro não pude deixar de reparar no casal sentado de frente para mim, num balcão da loja de conveniências, por trás do vidro que enclausura a lojinha.
Um casal jovem e bonito. O rapaz bebia uma cerveja, a garota um guaraná. O rapaz falava empolgadamente (e empolgantemente), ria muito. Colocava as mão no joelho, cruzava os braços, perguntava-lhe algo ou simplesmente esperava um retorno. Que era dado imediatamente, enquanto a moça continuamente acariciava seus longos cabelos negros, como se tentasse esticá-los ainda mais.
A conversa era entusiasmante e animada. Num rompante de expressão corporal, com os braços largamente abertos, ele solta uma piada ou algum comentário engraçado, como se fechasse um ato. Ela ria franca e abertamente, no mesmo instante ele se levanta, vira as costas e vai em direção à geladeira, onde restam mais cervejas. Durante a ausência do rapaz, ela permaneceu na gargalhada hilária, demonstrando ao mundo que a frase a pouco dita era realmente engraçada ou que ela está perdidamente interessada no rapazote. Ele volta, se insinua numa espécie de passo trôpego de dança, é recompensado com os belos dentes da moça à mostra novamente. Ainda rindo, abre a cerveja, dá-lhe um belo gole. E volta a conversa.
Enquanto isso eu pago a conta, entro no carro, ligo a Corinne, dou passagem a um senhor com um crachá preso ao bolso da camisa de botão por um clipe, subo a Bandeira Tribuzzi e sumo no largo horizonte da Holandeses.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Meu caminho

Na volta do trabalho para casa uso sempre o mesmo caminho. Desço na parada de ônibus em frente ao supermercado cruzo a avenida de quatro faixas e entro na vizinhança por uma rua asfaltada com belas casas.
Pouco antes de alcançar a entrada do meu condomínio, para encurtar o caminho, cruzo em diagonal um terreno baldio por uma trilha entre o mato e os detritos. Desta trilha já conhecia tudo. Seu ponto correto de entrada não era o óbvio, tem que se fazer um leve desvio na calçada. Conhecia todos os seus obstáculos. As espécies de mato que ali proliferavam sem se intrometer na minha trilha. Havia flores belíssimas, mesmo sendo de mato. Eu era conhecido de todos os vira-latas, eu não os importunava e nem eles a mim. Era amigo do jumentinho que se alimentava sempre amarrado, e me livrava facilmente de suas minas terrestres deixadas no caminho. Esse não respeitava minha trilha. Sabia das pedras e dos galhos. Dos montes de areia e de barro. Da metralha e do lixo deixado no canto do muro.
Mas as chuvas começaram e voltei a usar meu carro diariamente. Além disso, me ausentei por um tempo dos meus caminhos diários.
Hoje não há mais minha trilha. Ervas daninhas, matos feios e espinhentos, tomaram conta do meu caminho diário e servem hoje, provavelmente, de abrigo a animais peçonhentos. A lama tomou o lugar do chão pisado e resistente. O jumento sumiu e os cães parecem um tanto estressados. O lixo se espalhou por todo canto e há muito mosquito.
Quase não chego em casa esse dia.
Mudei meu caminho.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Entraram mudos e saíram calados.

Chegaram àquela espécie de cantina totalmente calados. Rijos e frios, reciprocamente. Sentaram na primeira mesa à vista.
Havia um certo ar de constrangimento na mesa. Um olhar cortante, de acusação. Algo não estava certo. Pediram mais com gestos que com palavras e ele fugia daquele olhar lascivo acompanhando os passos do garçom, esperando que lhe trouxesse sua água. Seus olhos acompanhavam o funcionário da cantina como se nele estivesse sua única chance de absolvição.
De tempos em tempo volta-se para aquele olhar à sua frente que ainda lhe pedia a cabeça. Só para conferir. Havia fogo naquele olhar.
O garçom chegara com a água. Tinha pedido aquela água não por sede, nem nada do tipo. Queria tomar apenas um pouco de tempo. Sabia que suas chances eram mínimas e o garçom não lhe tinha entregue a liberdade. Olhava os outros clientes daquele estabelecimento decadente, buscava piedade talvez. Um rosto conhecido que lhe tirasse do raio de ação daquele olhar perfurante. Nada. Letreiros, cartazes, nada ao alcance dos olhos. Só aqueles outros olhos, que lhe tiravam o sossego, a calma e a dignidade.
Alguns minutos depois, naquele tempo um tanto quanto suspenso no ar, naquela angústia de réu confesso e intimidado, o garçom redentor lhes serve a comida pedida, requentada e de não muito boa aparência.
Agora aqueles olhos acusativos não lhe causavam mais aflição. Ambos de boca cheia o diálogo estava improvável.
Acabaram, pagaram a conta e continuaram na calçada. Lado a lado.
Entraram mudos e saíram calados.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Um quarto

Uma boneca azul de pano no chão, de bruços, em frente a um somzinho cinza desligado, desses chineses que vendem nos camelôs por ai. Era esse o único vestígio de bagunça naquele quarto impecável.

Na escrivaninha, que também suportava o som em seu compartimento inferior, estavam empilhadas dezenas de discos juvenis, lápis, canetas, diversos livros didáticos, bastante riscados e enfeitados é verdade, mas cuidados até com um pouco de zelo. Fotos e mais fotos, de diversas turmas, apinhavam a parede onde o móvel recostava-se. Os mais diversos trecos de utilidade duvidosa faziam um volume imenso na pequena mesa, tomando-a praticamente por completo.

Em outra parede, o guarda-roupa branco, de muitas portas, jazia totalmente fechado e intacto. Pelo cartesianismo encontrado no quarto era provável, ao abrir as portas desse guarda-roupa, encontrá-lo totalmente compartimentado e organizado, com roupas limpas, bem dobradas e perfumadas, prontas para o uso e para o convívio social.

Nas paredes expostas, metros e metros de prateleiras laqueadas armazenavam uma infinidade de bichos de pelúcia: ursos, cachorros, palhaços, tartarugas e outras formas esquisitas. Bonecas de plástico, em carrinhos ou de frente a penteadeiras também ocupavam as prateleiras de madeira. Tudo limpo e organizado, e em muita quantidade.

Na cama, a colcha cobria a roupa de cama, era azul e acolchoada. O travesseiro era mantido por cima dela, à espera do repouso tranqüilo de uma cabeça cheia de idéias e suposições. Em baixo do travesseiro percebia-se um pijama, provavelmente, róseo e de tecido delicado.

Era sem dúvida um quarto de uma menina, de uma adolescente talvez.

E no gaveteiro de plástico, fazendo vezes de um criado mudo, restava um pequeno papel retangular, já um pouco amarelado e envergado pela incidência solar, escrito com letras hesitantes: Adeus.

domingo, 25 de novembro de 2007

O gole

Havia pego a tulipa de chope apenas para ganhar um tempo antes da obrigação de resposta gerada por aquele comentário.

Através do líquido dourado conseguia ver um mundo diferente. A brincadeira dos feixes de luz dourados através do líquido, o fizeram transcender tempo e local, fizeram-no rever o passado em instantes e o futuro também.

Os rostos de infância, a liberdade de calçadas, muros e terrenos baldios, nada parecia com sua realidade. Mas o mundo dourado em que estava agora, mostrava-lhe um caminho.

As irresponsabilidades de rapazote e os amores rápidos, superficiais e físicos deixaram lembranças divertidas que aquela luz douradas insistia em trazer à tona. Quanta coisa. As irresponsabilidades atuais são tão diferentes, traiçoeiras.

As faces dos presentes à mesa, fixando o olhar, no aguardo de alguma palavra, transfiguravam-se através daquele eldorado líquido e de temperatura tão amena. Pareciam faces estranhas, narigudas e orelhudas, pareciam duendes de pele dourada. E aquilo o pressionava e assustava.

A possibilidade de um futuro sombrio, mostrado através do fundo espesso daquela tulipa, o fez esbugalhar os olhos, mas o caminho já traçado até agora podia não ter volta. Tudo lhe fazia muros de caminhos estreitos e abissais, como as ruelas antigas de São Luís.
O gole lhe desceu rápido e saboroso levando-lhe o último tanto de fantasia.

Bateu o copo na mesa:

- Fodam-se!

Alto e claro. E levantou-se quase tombando a mesa.

Quarto Escuro

Estava num quarto escuro, não sabia ao certo como teria parado ali. Não sabia nem mesmo se aquilo era um quarto. Estava num compartimento fechado e escuro, sem aberturas.

Recostava-se em um dos cantos, encolhido abraçando os próprios joelhos. Chorava copiosamente e a causa desse choro lavado era indefinida, no mínimo era uma lembrança turva e sem nexo de tristezas talvez passadas, talvez não. Chorava e abraçava-se nos joelhos.

Esboçou algum esforço para rastejar. Mesmo esse esforço parecendo-lhe descomunal, maior muito que suas possibilidades físicas, abriu bem os olhos, tentando perceber ao menos vultos, soltou os joelhos, que rangeram como dobradiças de ferro ao se moverem, mesmo que lentamente, e visualizou seu objetivo no breu absoluto: apenas mover-se.

Pelo canto arrastou-se, molhando a parede com sua vertente de lágrimas encostada a ela. Era seu rastro. Um longo período e uma pouca distância se passaram até que ele encontrou um obstáculo. Parecia de madeira, e de lei, espessa e bem polida. Em certos pontos, os prováveis adereços de uma cômoda, torciam-se formando fusos infinitos. Decidiu-se que naquela altura atravessaria o amplo espaço negro à sua direita, deixando a segurança da parede, mas transpondo a dificuldade do móvel. Lançou-se ao amplo negro, sem amarras e pronto para conquista.

Virou então em ângulo reto à direita. Parecia mais animado, ao menos parecia ter a coragem necessária para ir além. Ainda arrastando-se, agora sem choro, tocava, pouco tempo depois, os fios de uma espécie de tapete, tentava imaginar quais formas o tal tapete descreveria. Fixou em sua retina uma espécie de espiral. Algo sem fim nem começo, mas que, em sua retina, tinha uma profundidade infinda e o que entrasse na espiral rolaria até o fim dos tempos.

A poeira acumulada no tapete espiral incomodava-lhe, e muito, o nariz. Espirros o fizeram apertar o passo para se afastar daquele incômodo. Nessa fuga esbarrou numa espécie de banco, um tamborete, de madeira. Encarou aquilo como um degrau novo a superar. Ergueu-se e num movimento rápido, tão rápido quanto suas juntas entrevadas podiam deixar, quase num pulo, postava-se em pé no tamborete, que se mantinha rígido e impassível.

Neste momento algo pêndulo encostou-lhe à testa. Um fio de aço, que não era frio pois estava coberto com uma camada plástica, testou a fixação do fio, envolve-lhe ao pescoço e derrubou o tamborete.

Sentiu ainda por milésimos de milésimos de segundos algo quente escorrendo-lhe a pele.

A espiral encharcou-se.